domingo, 4 de janeiro de 2015


A função do “não dito”

Eduardo Mattos Cardoso
eduardomattoscardoso@gmail.com


Querem me tirar “da zona de conforto”. Até entendo, mas não vou sair. Lembrei-me de Bourdieu e Pollak. Pensei: - será que o que está em debate é mais para “Coisas ditas”, livro do Sociólogo francês Pierre Bourdieu que, entre outras coisas, mostra como vários setores (político, religioso, médico, comercial, entre outros) falam em nome do “povo”.

Pensei de novo. Não! Está mais para o “não dito”! Aí me veio as palavras do Historiador Michel Pollak, em “Memória, Esquecimento, Silêncio”. A função do “não-dito” aparece, em primeiro lugar, como o levante de uma memória subterrânea favorecida pela crise de sustentação do insustentável; em segundo, o consentimento ou o silêncio dos que pensam diferente, por opressão ou interesse em uma oportunidade possível, tentando, em nome do bem comum, restabelecer o que considera ser a verdade e a justiça.

Segundo Pollak, “as lembranças proibidas, indizíveis ou vergonhosas são zelosamente guardadas na informalidade e passam despercebidas pela sociedade. É aí que intervém, com todo o poder, o discurso interior, o compromisso do “não-dito” entre aquilo que o sujeito se confessa a si mesmo e aquilo que ele pode transmitir ao exterior.”

A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa uma memória coletiva subterrânea da sociedade em geral dominada por grupos específicos. E a memória de grupos tem problemas de credibilidade, de aceitação e também de sua organização. A memória de grupos se integra em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, famílias, etc.

Manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo tem interesse em comum, aonde se inclui o espaço social, são algumas das funções essenciais da memória seletiva, ou seja, quando é conveniente se esquece do passado. O silêncio, além da acomodação ao meio social, poderia representar também uma recusa a experiências reais doloridas. Superação ou conveniência? Eis a questão!

Crônica publicada no jornal Fato em Foco do dia 05 de dezembro de 2014